De que cor é a República Portuguesa? Verde e encarnada, diremos em coro. Para a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário desta eterna jovem, ela é vermelha na explosão dos sonhos, creme nas realizações, negra nos períodos conturbados que a antecederam e que pontualmente a atravessaram, aqui e ali cinzenta, de novo salpicada de vermelho e definitivamente branca nas reflexões que suscita e nos ensinamentos que fornece. Ou seja, é um arco-íris de alegrias e tristezas, frustrações e esperanças. Uma viagem através desta paleta de emoções, nascimento de parto natural a partir de histórias, fotografias, textos didácticos e filmes tão inesperados que até parecem inéditos é-nos agora proposta pela referida Comissão, que organizou a multicromática exposição Viva a República, patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, pelo menos até final de Outubro (com possibilidade de se estender até Dezembro) - e que é de visita quase obrigatória.
A Cordoaria é um curioso edifício inaugurado em 1779 e que se assemelha a um comboio de cantaria de lioz e tinta amarela retesado ao longo do Tejo. Ali, onde se fabricavam cabos e velas para os navios fazem-se agora exposições evocativas de mundos sepultados embora tão próximos de nós. Como este da República, a primeira, aquela que durou escassos 16 anos, de 1910 a 1926, para logo se desmoronar como um castelo de paredes de quimera e corredores de vento sob as botas altas da Ditadura Militar e os botins de elástico de Salazar e do seu Estado Novo.
Esses 16 vertiginosos anos do nosso desencanto desdobram-se ante o nosso olhar através de uma combinação de texto e imagem em que nenhuma das duas componentes prevalece, já que se equiparam em área as zonas dos expositores dedicadas à documentação fotográfica e aos blocos explicativos. "A exposição lê-se como um livro", comenta alguém ligado à organização. Raros são os objectos expostos, para além de algumas armas e máscaras antigas usadas pelos esforçados e ingénuos magalas portugueses enviados para as trincheiras flamengas da I Guerra Mundial. Alguns sons de fundo - nomeadamente brados de multidão ora revoltada ora eufórica - dão ambiente aos quadros.
Segundos para a eternidade
Entra-se por uma zona de escuridão, evocativa dos últimos anos da Monarquia. O visitante é introduzido numa era de breu atravessada pela ditadura de João Franco, mas também pela actividade conspirativa dos grupos carbonários, pautada pelo bombismo com aura romântica e rematada pelo assassínio a tiro do rei D. Carlos e do herdeiro do trono em pleno Terreiro do Paço, naquela dúbia tarde de 1 de fevereiro de 1908. Pelo meio ficam as eleições de abril desse mesmo ano, em que sete deputados republicanos viram abrir-se-lhe as portas do anfiteatro de S. Bento. Curtos filmes documentam cerimónias públicas com a presença dos reis, ressaltando destas indiscretas e rápidas incursões pelo passado a preto e branco uma nota curiosa: a extraordinária altura da rainha Amélia de Órleans.
A revolução de 5 de Outubro de 1910 é narrada por meio das incontornáveis fotos legendadas e dos blocos de texto, mas também pela projeção contínua de mais uns tantos curtos filmes documentais pertencentes à Cinemateca e hoje praticamente desconhecidos do público. Vive-se, por segundos, o ambiente do Rossio, onde se haviam concentrado tropas fiéis à Monarquia, e o da Rotunda, com os soblevados acantonados atrás de frágeis barricadas de tábuas informes, mais semelhantes a montes de entulho de obras. Os civis e militares filmados olham fixamente as câmaras mas não acenam para elas, numa relação ainda intrusiva e não assimilada com uma também ela revolucionária forma de fixar o instante para a eternidade.
A Nova e a Velha
Na sequência das salas desenhadas pelos tabiques expositores vem de seguida uma pequena reconstituição do hemiciclo por altura da Assembleia Constituinte, com uma laboriosa recolha das fotos de todos os eleitos.
Seguem-as as realizações e as frustrações da República, desde a Lei da separação da Igreja e do Estado às do Registo Civil e do Divórcio, passando por aventuras menos bem sucedidas como as das normas laborais, não tão progressistas como haviam sugerido as promessas.
O golpe de Estado de Pimenta de Castro é reconstituído novamente em tons de negro, como escura é também a interessante sala dedicada à participação portuguesa na I Guerra Mundial, a "Grande Guerra" que permaneceu ao longo de décadas na memória de várias gerações. Sacas de sarapilheira sugerem o parapeito das trincheiras e o ruído das explosões dos shrapnells enchem os ouvidos do visitante, numa improvável simbiose com as notas dos instrumentos de sopro que, ecoando na sala contígua, sugerem já a "idade do Jazz" que se avizinha, no limiar dos "loucos anos 20". Antes de desembocar na era do Charleston e das grandes penúrias financeiras nacionais (maiores ainda do que as de hoje, por difícil que seja imaginar) teremos, no entanto, de atravesasar ainda o espaço de breu devotado ao golpe e à ditadura de Sidónio Pais e à efémera "Monarquia do Norte". Regressa, então, depois da Nova, a República Velha, com a sedução fanée da sua voz ligeiramente rouca, agora a perder-se em escândalos como o de Alves dos Reis, e em barbaridades como a "Noite Sangrenta" protagonizada pela sinistra camionette fantasma ao longo do seu périplo de morte pelas Avenidas Novas de Lisboa.
O incremento do desporto (do olimpismo ao futebol, com passagem pelo boxe, a esgrima e outras artes mais ou menos nobres) e a ali denominada "época de ouro da Imprensa" (a ABC, a Orpheu e outras revistas culturais e estéticas) merecem salas próprias. Finalmente, o pano cai sobre a festa, na forma do golpe de 28 de Maio de 1926, que congelaria o sonho por 48 anos - até ressurgir sob a forma de uma nova República democrática, em 1974.
24-06-10